sexta-feira, junho 30, 2006

Porre

A cabeça latejava. Quanto mais virava o rosto no travesseiro, mais esquecia o que tinha acontecido. A surra etílica que tomou a noite deve entrar para historia. Há tempos não via algo tão tenebroso. A boca tinha gosto de bombril gasto misturado com saponáceo. Não sei o gosto desses produtos de cozinha, mas consigo imaginar. Ao levantar para ver que horas eram, percebi pela fresta da janela, que o tímido sol de inverno descia enquanto um vento frio teimava em entrar pela janela escancarada. Estava nu, enrolado somente pelo edredon, vestindo uma meia somente, do lado contrário a cabeceira da cama. Jazi ali sem consegui pensar em nada por longos quatro minutos. Abri os olhos novamente. Olhos que lacrimejavam sem parar, vendo estantes e livros rodarem sem pensar. Viro o rosto para o outro lado. Além da parede branca, reluz um objeto vermelho e amarelo. Ao invés de ficar pensando besteiras, levanto assustado e sento-me na beira da cama. Acreditei que os já famosos flashbacks começariam.
Ao meu lado na cama, dormia uma guitarra de brinquedo. Mais precisamente uma guitarra inflável, dessas que encontram-se aos montes em parques de diversão, festas ou no próprio Saara. Sua cor vermelha delineava os entornos do instrumento enquanto a cor amarela fazia com que as cordas do instrumento por um momento fossem verdadeiras. Logo me veio a cabeça:- quando vi no cardápio a promoção, peça um e beba dois. Não deveria ter sido afobado. Pedi logo o mojito. Coloquei as mãos na cabeça e corri para cozinha, cambaleando e tateando tudo que via pela frente. Ao abrir a geladeira, a única coisa que sobrava era a jarra de água pela metade. Com a sede que tinha para repor as energias, bebi no gargalo. Água gelada com tempo gelado não se misturam e percebi que seria bom se colocasse uma roupa. Abri o armário e susto. Minhas roupas básicas não existiam mais. Só achei camisa preta, calças de couro, jeans rasgadas e um pôster do AC/DC. Corri para minha videoteca, e todos os meus clássicos não estavam lá. Pelo contrario, só havia show de rock pauleira. De todos os tipos. No vídeo, uma fita passava a hora que um musico famoso comia a cabeça de um morcego vivo. Fiquei estarrecido e sentei-me na poltrona da sala. Comecei a ligar essas informações. Bebedeira, AC/DC, calça de couro e morcegos...Fui beber mais água.
Achando aquilo demasiadamente estranho, resolvi por fim, tomar banho. Já era noite e acendi a luz. O banheiro continuava escuro e vi que a lâmpada estava queimada. Muito estranho já que tinha trocado há poucos dias atrás. Fui pegar uma nova para efetuar a troca. Trouxe junto à escada para trocar com segurança. Deixando o interruptor ligado, troquei a lâmpada. No momento que da conectividade elétrica, a lâmpada se iluminou. Por um instante fechei os olhos. Ao abrir, desci incrédulo em direção a bancada da pia. Nela, ao lado da escova de dente e fio dental, encontrei tinta branca, alguns brincos argolas, lápis para os olhos e rimel. Antes mesmo de olhar para o espelho, apavorei me. Passei a mão na cara, e ela estava para lá de ressecada. Ao olhar, a constatação. Não me via no espelho. Via um cantor de rock pesado com a cara toda pintada de branco, com realces pretos em volta dos olhos. Os cabelos sempre repartidos no meio, estava todo arrepiado, duro como tijolo. O pote de gel estava vazio no canto do banheiro. Liguei o som e tocava uma musica que desconhecia na qual uma pessoa gritava sem parar, implorando pela chegada do apocalipse. Já apavorado, abri a torneira do chuveiro para acabar com esse pesadelo real. Mas não tinha água. Precisava acabar com essa historia de qualquer maneira. Fui até o armário e coloquei a roupa menos extravagante que achei, uma camisa rosa fluorescente com um jeans cortado e remendado com correntes. Rezava para não encontrar ninguém fora dali. Iam me achar completamente fora de si.
Foi quando a campainha tocou. Vi pelo olho mágico que era Maria, a menina que chamaria para sair um dia, quando a coragem viesse. Me desesperei. Não tinha noção do que fazer, começava a ficar angustiado sem saber o motivo daquilo tudo. Tudo começou a vir na minha cabeça ao mesmo tempo. Vídeos, roupas, rimel, morcegos e gritaria. Junto disso tudo, veio também baixinho um jazz antigo de Cole porter que foi crescendo, crescendo , cada vez mais, até que só escutava ele. Isso me deu uma tranqulidade tamanha que fechei os olhos.
Abri logo depois e estava na cama, olhando para o despertador. O sol teimava em aparecer e o frio estava insuportável. Eram sete da manhã. Olhei para os lados e estava tudo normal. Levantei. Armário, videoteca, geladeira. Igual a sempre. Que susto! Que sonho! Que realidade sórdida – pensei. Tomei banho, me vesti para sair e preparava o café quando a campainha tocou. Abri a porta sem pestanejar. Lá fora estava Maria com uma guitarra de brinquedo. Sorria doce para mim e disse:
- Você esqueceu lá em casa, Ozzy.

quarta-feira, junho 07, 2006

Urticária

Só se coça. Suas unhas enormes logo a denunciavam. – É para tocar guitarra, dizia ela sem graça a quem não conhecia. Alguém acreditava? Realmente não sei. Eu não acreditei.

Era só alguém virar para o lado e pronto começava o coça coça. Pernas, braços, pescoço e pé. Pé esquerdo! Não entendia porque só o pé esquerdo, logo ele que não tomava decisão para nada. Chutar era com o direito, começar a caminhar... Pé direto, descer e subir escadas... Pé direito. Já que não fazia esforço ou era coadjuvante, o mínimo que deveria ser válido era sofrer um pouco. Mas nada adiantava.

Já fora em inúmeros médicos e especialistas diferentes e ninguém saberia responder qual era seu problema. Desesperada começou a conviver com a coceira. No verão do cão, ia trabalhar de gola role para tampar a vermelhidão no pescoço, no inverno usava uma leve camisa de algodão, porque a lã a incomodava. De certo, vida social era complicada. Os últimos três namorados a tinham largado, por incompatibilidade de problemas. A coceira estava presente durante quase todos os eventos. No cinema, filme começando, os dois abraçadinhos no fundo da sala, o suspense latente na trilha sonora.... – amorzinho, coça aqui minhas costas?
- Ah. Aonde?
- Mais em cima um pouquinho.
- Aqui ta bom? E fala mais baixo...
- AHHHHH. Agora sim.

Na hora do sexo, a mesma coisa.
- Hummm, delicia...
- Hoje ta muito bom...
- Ai meu deus!
- Hoje ta muito, muito bom!
- Ai meu deus, não to agüentando....
- Isso mesmo! Não é para agüentar. Se solta, grita no meu ouvido!!!
- Coça, o meu antebraço???
- Ah?!?!?!?!
- Vai coça? Para não parar o que estamos fazendo!!!
- Ta bom - com cara de injuriado.
- Humm delicia!!! Não pára, não pára!
- O quê?
- De coçar....

Desta maneira, já estava sozinha há dois anos. Suas forças iam se acabando, da mesma que suas unhas ficavam cada vez mais fortes de tanta coceira. Cansada de continuar assim, mandou prender suas mãos nas costas com algemas, por alguns dias. Passados 20 minutos, implorou para que abrissem. Não suportava sua urticária. Internou-se.

Lá ficou com sua coceira por um tempo longo. Por causa do inverno, as luvas que a derma atenuava o passar das mãos pelo corpo. Nesses três meses, não ficou vermelha e nem com feridas. Ganhou o apelido de “moça das luvas” e começou a ajudar os outros doentes que chegavam a clinica.

Fez daquilo seu novo mundo, onde seu problema era o menor de todos os problemas. A moça da luva voltou a sorrir timidamente. Ao fim do inverno, começou a se preocupar. Calor aparente, as luvas não seriam necessárias. Por vários dias ficou no quarto, fitando as mãos vestindo luvas. Como são bonitas e combinam com qualquer um dos meus vestidos. Acho que estou mais atraente, dizia ela com prazer para si mesma.

Naquela manhã de primavera, acordou com o sol quente batendo na cara. Suas mãos estavam suadas. Logo se desesperou. Saiu do quarto chorando implorando para deixar a suavidade em seu corpo. Seu choro era ouvido por todos os lugares do antigo casarão, onde funcionava a clinica. Passando pelo saguão central, seus olhos pararam de lacrimejar. Todos cercavam o jovem moreno que acabara de entrar algemado numa cadeira de rodas. Os médicos e enfermeiros pediam calma a Jairo. E Jairo continuava a se debater, pedindo para ser solto. A moça da luva mudou seu enfoque e foi ao encontro dele. Disse que poderia ajudar Jairo. Saberia o que fazer para acabar com a angústia presente em seus olhos de adolescente apavorado.

Quando soltou as algemas, viu qual era a mania de Jairo. Ele não conseguia deixar de arranhar com as mãos tudo que ele via e passava. Enquanto arranhava os braços da cadeira de rodas, seus olhos procuravam outra superfície. Para se acalmar após a moça de luva começou a conversar com ele. Logo se tornaram amigos. De amigos, confidentes. De confidentes, amantes. De amantes, eternos.

Na clinica, foram morar e tratar de suas manias. Porém, a moça da luva não usava mais suas luvas. Jairo a coçava diariamente, a toda a hora. Daí surgiu à cumplicidade deles. Viveram felizes para sempre. Até o dia que nasceu Laurinha, que teimava em tocar no teto.

sexta-feira, junho 02, 2006

Pizza Pizza

Rápido como o vento, ele realizava as entregas de uma maneira cordial. Todos o adoravam. Sempre muito esguio, cabelo molhado, bigode bem feito. Ninguém desconfiava de sua tormenta.

Entre meio dia e nove da noite, Tonico era o entregador de pizza mais badalado da região. Porém quando batia o sinal e deixava seu capacete azul encostado na motocicleta, seu semblante alterava-se. Seus olhos caiam, os cabelos confusos, as roupas antigas, muitas vezes furadas, a voz carregava uma certa monotonia aparente. Saia caminhando pela larga avenida, com o bolso cheio de gorjeta, mas com as mãos vazias de afeto.

Quando chegava na bifurcação, sempre parava. Sentava-se bem no meio e lá ficava, tomando a decisão para que lado seguir. O vento soprava forte naquela noite, pedia por um agasalho, mas enfrentava forte o ar frio. Toda vez era a mesma coisa. Nunca se decidia. Mas naquela noite seria diferente.

Tomou coragem suficiente para encara (ainda que) no imaginário, sua família pela enésima vez, levantou-se do meio fio, limpou os bolsos de trás da calça, foi molhar o cabelo, ajeitou o bigode e partiu para o lado desconhecido da bifurcação. Naquela noite, utilizou tudo que ganhará no dia, em bebida, jogos e mulheres. Dizem por aí que dormiu sorrindo.