terça-feira, agosto 29, 2006

Feijoada com futebol

Naquela manha de junho, Edileuza preparava sua famosa feijoada para a família. Pois é, sábado era dia da feijoada da Edileuza. Todos na rua já se acostumaram acordar e andar pelas ruas de Vila Isabel e sentir a presença dos ingredientes. Apesar de vários comentários e convites para abertura de um restaurante. Edileuza relutava em aceitar dizendo que era coisa de madame. De família humilde, gostava de cozinhar para família, contando filhos e netos. Tudo bem, que diversas vezes tinha agregados. Mas vá lá, não tinha problema.

Naquela manhã, um grande estouro assustou-a, fazendo com que ela se desequilibrasse e deixasse cair na mesa a couve recém cortada e o paio já preparado. Edileuza, pavio curto, enxugou a mão no avental, foi ate o quintal, pegou a vassoura e viu uma bola de futebol. Pensou logo em Pedrinho, o capeta. Ninguém o segurava. Vivia para cima e para baixo com uma bola de futebol que seu pai ganhou na Copa de 86. surrada, quase sem brilho, mas redonda como nunca. Pedrinho e a bola estavam junto para que der e vier. Mas a bola era laranja. Nunca tinha visto uma igual.. Mesmo assim, com a vassoura na mão, saiu de casa ainda suja de couve e cruzou a rua atrás dele. Adentrou sua casa, com uma intimidade digna de comadre, soltando fogo pela boca, pronta para passar a limpo mais uma travessura do menino. Ao abrir a porta do quarto, encontrou-o deitado de pijama lendo um livro de técnicas de futebol. Edileuza achou aquilo estranho, tomou o livro de suas mãos e sentou-se na cama. Pedrinho assustado coma intromissão se recolheu num canto do quarto, esperando a bronca. Num estalo, juntou as peças e viu que não tinha tempo hábil para Pedrinho fazer uma jogada de tanta genialidade. Quebrar uma vidraça, correr para casa, colocar um pijama e deitar-se como nada tivesse acontecido. Para testá-lo, começou a fazer perguntas sobre os temas do livro. E não é que ele se saiu bem?

- Como se marcar um impedimento?- perguntou ela. Ele foi lá e a descreveu direitinho.

- Quantos jogadores podem vestir a braçadeira de capitão? Pedrinho foi lá e a desconcertou.

- Descreva o esquema três-cinco-dois? Falou Edileuza, com pinta de que tinha pegado ele pelo pé, como num carrinho desleal atrás de uma bola na meia lua. Pedrinho só não respondeu, como explicou a ela que nenhum treinador lançava mão desta tática e que o certo era o famoso quatro-quatro-dois.

Nunca tinha parado para pensar na inteligência do menino, nem na genialidade dos preparos das jogadas. Levou alguns lances para a esfera da cozinha e imaginou-se preparando deliciosas receitas a partir das jogadas contadas pelo livro. Não satisfeito Pedrinho ainda pos na TV aquele vídeo antigo da Copa de 70, que mostrava repetidamente para qualquer de seus amigos. Naquele instante, Edileuza tinha virado uma amiga de Pedrinho. Fez embaixadas, explicou firula, aplicou um drible da vaca no criado mudo, um chapéu na mesa de jantar. Só faltou chutar a gol na geladeira. Mas foi aí que ela se deu conta que tinha vindo aqui atrás do autor perna de pau de tamanha falta de destreza que estilhaçou seu vitral.

Voltou a ficar furiosa e mais uma vez, Pedrinho sentiu-se ameaçado. Pela primeira vez, não tinha sequer ido a rua brincar. Estava preparando-se para o campeonato do bairro, como jogador principal da rua e suplente a auxiliar técnico. Tentou mostrar a Edileuza seus últimos passos, seus dotes futebolísticos, fazendo um contratempo para acalmá-la.

Não adiantou. Edileuza, irredutível, era pior que zagueiro. Não passava nada. Foi então que Pedrinho chamou sua mãe, que estava o tempo todo a estender as roupas no varal. Ela não só confirmou a historia do moleque, como repreendeu a comadre por sempre desconfiar do filho nas horas ruins. E o que ele ensinara nesse pouco tempo que passaram juntos? Não tinha significância? – pensou Edileuza. No final, já estava coma cabeça baixa, andando para a porta a procura de um silencio diferente. Um tipo de silencio, que enchesse seu orgulho de razão e não a deixasse envergonhada pela culpa pré-julgada no menino.

Na calçada, parou, olhou para os lados e não avistou nenhum dos moleques que brincavam naquele espaço. Será que sumiram todos? – imaginou ela. Com destreza, tirou a bola de debaixo dos braços, colocou-a no chão e pisou em cima com uma das pernas, numa posição típica de goleador esperando alguém se manifestar ou buscar a bola. O tempo foi passando e a cara de Edileuza foi perdendo o brilho. Sua roupa suja acabou fazendo parte do ambiente ao longo daquela tarde e nada nesse mundo a faria sair de lá. Esboçou dar um grito de raiva por terem quebrado se paradigma. Nesse sábado, pela primeira vez, não houve feijoada na casa de Edileuza. Nem mesmo o suplico dos parentes adiantou. Por lá ficou até depois do anoitecer.

Passado alguns meses, a feijoada voltou a sua periodicidade mensal. A mesma organização de sempre, o mesmo inigualável sabor, o mesmo cheiro a pairar pela calma rua de Vila Isabel. Com uma nova condição: que os filhos lavassem a louça, pois agora sábado a tarde era dia de campeonato brasileiro e Edileuza não perdia por nada nesse mundo. Ela e sua inseparável bola de futebol laranja.