sexta-feira, março 10, 2006

Mangue

Todo dia ao amanhecer, Joaquim pegava seu puçá, colocava sua bermuda cortada de uma antiga calça jeans, botava o chapéu de palha e aquela camisa branca com estampa de político e seguia em silencio para a beira do rio, margeando sempre a ribeirinha que naquela hora estava bem baixa devido à maré. Ele caminhava em direção ao mangue. Seu trabalho, siris, caranguejos e pequenos peixes que se alimentavam na beirada.
Desde moleque, Joaquim acompanhava seu pai nesse trabalho ate um dia que seu pai não agüentou o sol forte de um dia insuportável e caiu fulminado de um ataque cardíaco no mangue que sempre prezavam tanto. Foi um baque e tanto. Se manas e semanas passará sem ir ao mangue, mas precisava trabalhar, se alimentar, em poucas palavras, ele deveria seguir em frente e não deixar o abatimento tomar conta disso, que um dia algo de muito bom iria acontecer com ele. Levava fé. E em fé devemos respeita-la se não acreditarmos. Princípios de vida e educação.
O barulho de seus pés na lama anunciava a chegada ao seu local de trabalho. Silencioso, deserto, com sombras que se formavam com o nascer do sol e cada dia tinham uma forma e tonalidade diferentes, graças ao efeito do vento e de suas nuvens trazidas. Benzia-se todo momento antes de aprofundar-se ate o joelho catando esses animais. Sentia medo da traição. Da traição desses siris e caranguejos que se escondiam nas profundezas escuras do lamaçal. A qualquer momento algo poderia dar-lhe o bote. Diversas vezes sangrava por toda a perna pelas picadas certeiras com suas patas de alicate. Tentara de tudo, bota emborrachada, calça comprida, luvas. Mas quanto mais a tecnologia ele utilizava mais escasso ficava a pesca. Tinha certeza que todos sentiam a presença de algo diferente naquelas manhas e nem apareciam.
Porém nessa manhã algo diferente mudou. Já estava pescando há meia hora e percebeu que seu balde estava abarrotado de caranguejos. Achou o máximo, foi enchendo e enchendo até esgotar-se. Sabia que iria realizar inúmeras viagens para levar ate a revenda. Não se fez de rogado, com força e determinação vendeu tudo. Um dia, dois, três.... uma semana. O mangue estava rendendo frutos, se pudesse comparar diria que parecia uma grande mangueira na primavera. O dinheiro entrava e ele se animava. Começou a comprar coisas novas para casa. Inclusive para a cidadezinha mais próxima ele foi. Joaquim ficou abastado com a vida, mas não largou seu mangue.
Após esse período inicial, deixou de ir num domingo para descansar. Afinal estava exausto. Foi quando segunda feira, algo mudou seu rumo. Naquela manhã, após benzer-se antes de fincar seus pés na lama, a viu. Do outro lado do rio, acompanhou seu surgimento de dentro do lamaçal. Era linda, morena de pele clara. Não trajava nada por cima, porem suas curvas lameadas anunciavam um belíssimo corpo. Ficou a admirá-la por longos minutos. Ela emanava um som calmo, lírico que fazia o tilintar das folhas parecer um belo acompanhamento musical.
Estava enfeitiçado! Apaixonara-se. Não tinha duvida. Largou seu balde e luvas e saiu com dificuldade ao seu encontro. Cada vez que ia dando passos, a musica se tornava mais nítida e alta. Seu corpo já não respondia a seus comandos. O mangue, que achara por anos que tinha uma profundidade pequena, abriu-se. Cada passo que dava, afundava cada vez mais. Ficou surpreso com essa descoberta, mas não parou um minuto para olhar para trás. Casa, família, amigos, nunca tivera tão forte sentimento que o fizesse voltar. Ouviu o nome de Lara repetidas vezes. Chamou por ela, e ela o fitou e respondeu com afeto. Sua voz transmitia clareza, como um trago que purificasse sua garganta. Seus olhos brilhavam refletidos nas águas do rio. Quando estava com o corpo quase todo coberto, parou.
Joaquim teve um lapso de consciência, ficou estático e como num flash, refletiu sobre tudo que passara em sua vida comum. Desde as brincadeiras perdidas na infância, passando pelas dificuldades na alimentação e na educação até a bonança dos últimos dias. Seus pais nunca acreditariam no que ocorria com ele. Riqueza, amor, paz. Isso era muito bom para ser verdade, pensou ele, apesar do pouco tempo na escola e muito menos nos livros da vida. Algo está errado. Lembrou-se das historia do boto que seu pai contava quando criança.
- Será? – pensou ele. Essa historia era para eu me precaver e não ir nadando ate o outro lado da margem. Devido a correnteza, meu pai sentia um pouco de medo. No instante que fui ganhando idade, essa questão se dissipou. Agora fico confuso.
Resolveu interpelara para saber de suas intenções. Gritou:
-Lara, Sua voz me encanta, mas venha até aqui!
Ela aumentou seu canto e desnorteou-o mais uma vez. Quando não dava mais pé, recuou.
-Lara, Lara, não consigo ir até você. Vou me afogar! Quero saber um pouco de ti. Sua voz me lava a alma. Da onde és?
-Sou daqui, nunca me viu? Perguntou. Todo dia de manhã estou aqui a te observar. Somente hoje tive coragem de falar com você – continuou ela
-Mas como? Eu nunca a vi? Moro neste mesmo lugar há vinte anos, conheço cada espaço de terra dessa região, inclusive esse mangue que é minha segunda casa.
-Taí o que você falou Joaquim. Conheces somente a terra, os mares ainda tem que desbravar. E ninguém melhor do que eu para te mostrar. Venha comigo, iremos a lugares que você jamais pode imaginar....
-Como assim, você quer me levar? Com que propriedade? Acabamos de nos conhecer e apesar de ser humilde tenho plena consciência das coisas que acontecem hoje em dia na sociedade e não seria homem suficiente para me apaixonar de primeira. Hoje em dia temos que conhecer a pessoa antes. O simples fato de você estar no mangue não te reserva o direito de me ter...
Lara arregalou os olhos, não entendendo o discurso moralista vindo de Joaquim , um jovem catador de siri e caranguejos do mangue. O mesmo mangue que há pouco forneceu tudo de bom para ele, fartura, felicidade e prosperidade. Era tudo obra de Lara para conquistá-lo. Que poder ela tinha, e que Joaquim nem desconfiava? Alguma força sobre as águas, sobre os peixes e seres vivos daquele ecossistema.

A continuar....